Anualmente somos conduzidos pela Igreja a trilhar um caminho de transformação e de ascese nos 40 dias que têm a finalidade de nos preparar para a Páscoa, que é o centro e o ápice do ano litúrgico e da espiritualidade cristã. Todavia, corremos o sério risco de vivermos este tempo sem adentrarmos na sua profundidade, apenas ouvindo e repetindo frases tradicionais prontas, como: “Quaresma é um tempo de conversão…” ou ainda: “Já escolheu a sua penitência deste ano?”
Claro que a conversão e a penitência são essenciais para que possamos viver bem este tempo. O problema está em focar apenas nas práticas exteriores e esquecer-se que elas devem ser o reflexo daquilo que o interior é chamado a viver: uma travessia em direção a Deus, deixando para trás o que é sinal de escravidão e abraçando uma vida de liberdade que Cristo deseja nos conferir.
Observamos com grande frequência o avanço de duas extremidades que são perigosas e que não nos ajudam a fazer esta travessia, muito pelo contrário. Existem aqueles que desprezam completamente as práticas exteriores, afirmando que o importante é apenas o que está no coração. Chegam até a distorcer o jejum e a abstinência da forma proposta pela Igreja, afirmando que o seu jejum será não falar mal dos outros e não usar palavras negativas, esquecendo-se que isso deve ser evitado o ano inteiro, e não apenas neste tempo a título de penitência.
Outro caminho perigoso a ser percorrido, é aquele onde se impõem as mais variadas práticas exteriores, mas que não encontram ligação com aquilo que se vive no coração. Praticam a abstinência, o jejum, fazem penitência, mas o intuito principal é ser visto como um mestre espiritual a ser imitado e admirado, não tendo a coragem de abandonar seus vícios e aquilo que está no secreto do coração e não se conforma à vontade de Deus.
Mas então, como Deus espera que vivamos este tempo sem cairmos numa dessas extremidades? Como fazer uma ligação com aquilo que praticamos exteriormente e aquilo que o nosso coração deseja alcançar, uma maior união com Deus?
Quem nos dá a resposta é o próprio Jesus no Evangelho que ouvimos na quarta-feira de cinzas (Mt 6,1-6.16-18). Nosso Senhor nos apresenta uma perfeita ligação entre aquilo que fazemos como práticas e a nossa vida interior. Somos chamados a dar esmola, mas não como um meio de exaltação da própria imagem, de publicidade, de aplausos. Quem deve ser exaltado nesta obra de caridade não é o que dá, mas aquele que recebe. Ele deve receber atenção, carinho, afeto, uma escuta.
Nesta mesma esteira, é colocada a oração. Somos chamados a quando orarmos, entrar no quarto e rezar ao Pai que está no oculto. Mas que quarto seria este? É o interior, a morada da alma, onde Deus habita naqueles que vivem na sua graça e mantém com eles esta relação íntima de escuta e diálogo.
Por fim, o jejum não pode ser vivido com ares de abatimento e cansaço para que as pessoas notem quem o pratica, mas deve ser vivido na alegria e notado pelo Pai que está no oculto, unicamente.
Que esta Quaresma seja rica em graças espirituais para todos, uma verdadeira travessia em direção à Páscoa, que é passagem. Passagem de uma vida de aparências para uma vida interior. Passagem para o Pai que está no oculto, no quarto do coração, desejoso de colher em nós frutos de uma verdadeira mudança.
Adriano Santos de Oliveira Seminarista da Arquidiocese de Juiz de Fora Cursando o 4º ano de Filosofia